Carro a hidrogênio nacional foi projeto da Unicamp em 1994; relembre

16/12/2024 10:09 || Atualizado: 16/12/2024 10:09

Há 30 anos, outro Gurgel também construiu um carro 100% nacional à frente de seu tempo

Apesar de possuir não só um, mas dois sobrenomes em comum, o engenheiro mecânico Eduardo Gurgel do Amaral não tem nenhum parentesco direto com João Augusto do Amaral Gurgel, fundador da conhecida marca de veículos nacionais. Mas, talvez por alguma desconhecida ligação antepassada, também nutria o mesmo sonho: usar tecnologia nacional para construir um veículo próprio.

Os caminhos, porém, foram bem distintos. Ao contrário de João Augusto, que optou pelo tradicional sistema mercadológico, Eduardo encontrou no ambiente acadêmico as condições para realizar essa façanha.

Durante o mestrado em engenharia elétrica na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), no início dos anos 1990, ele conheceu o professor Ênnio Peres da Silva, coordenador do Laboratório de Hidrogênio. Juntos começaram a tirar do papel um projeto para lá de ousado: um veículo nacional elétrico alimentado por célula de combustível a hidrogênio

Na época, apenas Estados Unidos, Japão e Alemanha pesquisavam a respeito. “Nosso objetivo era estimular o desenvolvimento de tecnologia nacional para o carro que imaginávamos que estaria no mercado dali uma década, com emissão zero”, recorda o professor.

Havia apenas um pequeno problema: não existia nenhum recurso disponível, e a chamada célula de combustível simplesmente ainda não era sequer fabricada em nenhum lugar do mundo. Mesmo assim, munido de muita força de vontade, Eduardo topou a epopeia, e passou a buscar doações junto a empresas para tentar tornar o projeto realidade.

 

A base do carro a hidrogênio nacional

A antiga Companhia Energética de São Paulo (CESP) doou uma Kombi velha – para usar um eufemismo. Eduardo Gurgel se recorda dela como “uma sucata, que nem dava para saber se era marrom pela cor da pintura ou de tanta ferrugem”. Mas ele conseguiu aproveitar o chassi, que virou a base do projeto. Era 1992.

Aos poucos outras empresas participaram: a WEG doou um motor elétrico, a Delco baterias de caminhão, a Yanmar um gerador e a Cedros partes da carroceria. E assim foi nascendo o que parecia ser um carro, que passou a ser chamado de Vega – nome da estrela mais brilhante de uma constelação (mas Eduardo brinca que é sigla de "Veículo Elétrico Gurgel do Amaral").

 

Contagem

Na própria oficina do Laboratório de Hidrogênio o Vega foi então se materializando, parte a parte. Depois de instalada e adaptada a parte mecânica ao chassi da Kombi, veio a carroceria: dianteira moldada em fibra de vidro, faróis, lanternas e para-choques de Monza, portas, laterais traseiras e interior de Kadett. Os vidros foram produzidos sob medida pela Fanavid.

Eduardo conta que nunca fez um desenho do carro no papel, mas inspirou-se naChevrolet Lumina, então minivan de estilo futurista. Porém, para demonstrar com maior facilidade o sistema de alimentação por hidrogênio, optou por construir o Vega no estilo de uma picape.

Mais tarde vieram uma bela pintura, faixas decorativas da 3M, rodas modelo Esfiha cromadas da Rodão e voilà : nascia efetivamente o Vega, que ainda ganhou uma espécie de capota marítima formada por placas solares. Era 1994. Como não havia tecnologia suficiente na época, explica o prof. Ênnio, “o objetivo era demonstrar a capacidade de gerar desenvolvimento da célula de combustível a hidrogênio no Brasil”.

 

Como funcionava o Vega

Em resumo o Vega funcionava assim: um gerador de combustão interna, movido a hidrogênio e a energia solar, acionava um motor gerador, que produzia eletricidade, que por sua vez alimentava e recarregava as baterias. Elas estavam ligadas a um inversor de corrente, que então mandava energia para o motor elétrico que efetivamente movimentava o veículo. Em suma, tratava-se de um veículo elétrico abastecido por um sistema híbrido solar-hidrogênio.

Seus números não eram exatamente impressionantes, mas deve-se levar em conta o contexto da época. Autonomia estimada em 50 quilômetros e velocidade máxima de 50 km/h, apenas teoricamente – pois Eduardo conta que o carro era muito difícil de dirigir, por conta das raízes de Kombi associadas a um peso total que chegou a 1,5 tonelada, sendo 800 kg só de baterias. “A direção era pesadíssima e os freios totalmente insuficientes”, recorda.

Ousado, Eduardo queria mostrar o Vega no Salão do Automóvel de 1994. E conseguiu, pelo ineditismo do projeto, arrumar um pequeno espaço no pavilhão. Aí veio a consagração: o então Presidente da República, Itamar Franco, topou convite para conhecer o carro da Unicamp – era o que faltava para o Vega ficar famoso. Apareceu em jornais, revistas e programas de TV.

A glória rendeu ainda convite para o carro participar de uma exposição relacionada a energias alternativas em Brasília no ano seguinte, onde foi a vez do novo ocupante do Palácio do Planalto, Fernando Henrique Cardoso, conhecê-lo de perto.

 

Evolução do carro a hidrogênio nacional

Eduardo, contudo, foi cursar doutorado e acabou se distanciando um pouco do Vega – o que, porém, não representou o fim da carreira do veículo. Seu desenvolvimento continuou no Laboratório de Hidrogênio da Unicamp e em 2004, graças a um financiamento de R$ 400 mil do Ministério de Minas e Energia (MME), o carro ganhou uma verdadeira célula de combustível a hidrogênio, ainda experimental.

Saíram os geradores e entraram novo motor elétrico, menor e mais potente, e novas baterias, mais leves e de maior capacidade, além de pintura e grafismos renovados. A capota marítima foi substituída por outra tipo fibra, com laterais em vidro, para acomodar e permitir a visualização da célula de combustível. As mudanças técnicas foram tantas que o modelo foi rebatizado de Vega II.

Após alguns ajustes técnicos o Vega II logo passeava serelepe pelo Campus da Unicamp, para espanto geral. O sucesso foi tamanho que lançou-se projeto para novamente atualizar o modelo, no que seria o Vega III: haveria ainda um reformador de etanol a bordo para produzir o hidrogênio. Sim, a mesma coisa que se fala hoje em dia, só que vinte anos atrás – e com tecnologia nacional.

 

Restauração de um sonho

Mas na época o entusiasmo pelo hidrogênio como combustível acabou esfriando, a atualização do projeto nunca saiu e o Vega II acabou ficando cada vez mais encostado, até que em 2016 o laboratório foi transferido. O Vega foi então colocado em uma área externa, a céu aberto, e lá continua até hoje, um tanto castigado pela ação do tempo e do clima.

Felizmente, hoje a turma do Núcleo Interdisciplinar de Planejamento Energético (NIPE) da Unicamp busca recursos para recuperá-lo. Bruna Moraes, coordenadora do NIPE, explica que a ideia é voltar a exibir o Vega como uma espécie de símbolo concreto da capacidade da pesquisa nacionalem desenvolver tecnologia para uma nova era – exatamente como dizia um totem no pequeno estande do Vega no Salão do Automóvel de 1994. A restauração é estimada em R$ 75 mil.

Não é preciso muito para calcular que se este experimento tivesse prosseguido na época, e ultrapassado os muros da universidade, poderíamos contar hoje em nossas garagens com veículos como o Toyota Mirai, ou seja, elétricos a célula de combustível a hidrogênio, com emissão zero de poluentes, que simplesmente abasteceríamos no posto com etanol, como fazemos agora com qualquer carro flex – e esse incrível desenvolvimento tecnológico teria sido 100% nacional. Já imaginou?

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